Antes que o assunto caia no esquecimento
Professor Lages, historiador,
teólogo, doutorando em
Ciência das Religiões
Há alguns meses fomos surpreendidos por uma polêmica declaração do deputado federal por São Paulo Marcos Feliciano (Partido Social Cristão), de Orlândia, que é também pastor da Igreja Assembléia de Deus, eleito com 211.855 votos. Ele dizia no seu twitter que os povos da África eram amaldiçoados por Deus. Este fato alcançou grande repercussão na mídia, na esteira de outras polêmicas declarações, mas na mesma linha de raciocínio, do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), que acaba de se livrar de uma representação apresentada pelo PSOL no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados.
O deputado Marcos Feliciano chegou a dar uma inusitada coletiva na Câmara Municipal de Ribeirão Preto, ao lado do vereador Oliveira Júnior, do mesmo Partido Social Cristão, e que agora enfrenta uma comissão processante dos seus pares, sob a acusação de quebra de decoro parlamentar. Na entrevista, o deputado Marcos Feliciano tentou explicar suas declarações discriminatórias e racistas e aí a situação ficou pior. Tomou o nome de Deus em vão, responsabilizando-O pela tal maldição e foi buscar na Sua Palavra a base para toda a sua argumentação. Disse que ele não era racista, não estava discriminando os negros, mas que estava lá na Bíblia, havia base teológica para suas afirmações: Deus havia excomungado o continente africano.
Deixemos para os movimentos sociais, principalmente os ligados à matriz cultural africana, a mobilização da sociedade para debater e condenar a postura do deputado. Já foi pedida uma ação judicial no Fórum de Orlândia e irá enfrentar outros questionamentos na Câmara dos Deputados em Brasília. Mas gostaríamos de enfrentar essa discussão na arena escolhida pelo deputado, como se esta arena fosse de sua única e exclusiva competência. Vamos à teologia e à exegese bíblicas.
Comecemos por algumas observações muito interessantes: não existe em todo o Antigo Testamento uma única menção da palavra África. Os estudiosos não chegaram até hoje a uma explicação razoável sobre a origem etimológica da palavra África. Afri era o nome de vários povos que se fixaram perto de Cartago, no norte do continente. O seu nome é geralmente relacionado com os fenícios que chamavam aquela região de afar, que significa "poeira", embora outra teoria tenha afirmado que o nome também deriva de uma palavra da língua bérbere, ifri, palavra que significa "caverna", em referência às grutas onde seus habitantes moravam.
No tempo dos romanos, Cartago passou a ser a capital da Província da África, que incluiu também a parte costeira da moderna Líbia. Os romanos utilizaram o sufixo "-ca" denotando "país ou território". Mais tarde, o reino muçulmano de Ifriqiya, atualmente Tunísia, também preservou o nome. Podemos concluir que o termo África foi construído à época dos romanos, sua origem se relaciona ao norte do continente e nada tem a ver, na sua origem, com a África Negra, subsaariana.
O texto bíblico a que o pastor se refere é a famosa Tabela das Nações em Gênesis 10. Sob a forma de um quadro genealógico, este capítulo fornece uma relação de povos, a partir da descendência dos três filhos de Noé, agrupados menos segundo suas afinidades étnicas e lingüísticas do que segundo suas relações históricas e geográficas. Os filhos de Jafé povoam a Ásia Menor e as ilhas do Mediterrâneo (alguns se arriscam a fazer uma relação bastante incerta com povos de língua indo-européia). Os filhos de Cam povoam os países do Sul: Egito (Mesraim), Etiópia (Cuch), Arábia (Sabá, Hévila, etc) e Canaã lhes é ligado pela lembrança da dominação egípcia sobre esta região. Entre esses dois grupos, estão os filhos de Sem: elamitas, assírios, arameus e os antepassados dos hebreus.
A maior parte de Gênesis 10 é de origem sacerdotal, ou seja, teve sua redação final entre círculos sacerdotais israelitas no final do exílio babilônico ou logo depois dele (século VI a. C.). Sei que o pastor terá dificuldades de aceitar isso, pois a inerrância bíblica é base de seu argumento, como o é da maioria das igrejas pentecostais e neopentecostais e dos teólogos a elas ligados. A inerrância afirma que a Palavra de Deus na Bíblia deve ser compreendida a partir do entendimento literal do texto, dando-lhe, por assim dizer, um caráter científico (conforme o entendimento que temos hoje de ciência, de viés marcadamente positivista, e que não existia à época da redação dos textos bíblicos). Percebe-se que a discussão é muito mais complexa para um pastor se aventurar a fazer afirmações que provocaram tanta reação.
A Tabela das Nações expressa o conjunto do conhecimento do mundo habitado que se podia ter entre os judeus exilados na Babilônia, ou de logo após o exílio, no século VI a. C. E veja que estamos falando de uma época muito anterior ao desenvolvimento da civilização greco-romana no mundo ocidental-mediterrânico. Por outro lado, temos aqui uma afirmação importante, a da unidade da espécie humana, dividida em grupos a partir de um tronco comum. Essa exegese passou despercebida pelo pastor.
A Tabela das Nações comete equívocos histórico-científicos, perfeitamente compreensíveis, ao colocar Caftor e seus filhos filisteus como descendentes de Mesraim. Sabemos, pelo próprio Novo Testamento em outros textos (por exemplo, em Isaías, 74:4 e Amós 9:7) que Caftor era a ilha de Creta, no mar Egeu (nada tinha a ver com o Egito), e o equívoco deve se explicar porque os filisteus passaram pelo Egito ou foram expulsos de lá pelos faraós para a faixa costeira do sul da Palestina (Gaza), passando a ser seus vassalos. Nada mais lógico, então, que colocá-los como irmãos dos egípcios. São textos de diferentes épocas e diferentes contextos. Outro equívoco: os próprios cananeus como descendentes de Cam. Com certeza, eles são de cultura e língua semita tanto quanto os hebreus. Mas vejamos bem: era a visão que o redator bíblico tinha no seu tempo, estava mais comprometido com uma visão teológica do que histórico-científica. E nem por isso ele deixou de ser inspirado, sem deixar de ser humano e contextualizado.
Mas aprofundemos um pouco mais na questão da maldição sobre a África. O pastor faz esta ilação rápida com base numa teologia rasa (não dá para aceitar que seja uma interpretação, pois nenhum biblista sério vai afirmar que Deus amaldiçoou a África) se reportando à maldição sobre os descendentes de Cam, um dos três filhos de Noé, já citados (Gênesis 9:8-27). Cam viu a nudez de seu pai embriagado e nada fez, ao contrário dos seus irmãos que o cobriram com respeito. Quando Noé acordou, amaldiçoou um dos filhos de Cam, Canaã (percebe-se aqui, mais uma vez, um texto mais teológico que histórico). As palavras de maldição de Noé dizem respeito ao filho mais novo de Cam, Canaã, e não a Cam propriamente: “Maldito seja Canaã! Que ele seja para seus irmãos, o último dos escravos!” (Gênesis 9:25).
É como se o seu neto fosse amaldiçoado com a escravidão imposta pelos seus tios. Na teologia do Antigo Testamento, as bênçãos e as maldições dos patriarcas são palavras eficazes que atingem um chefe de linhagem e se realizam em seus descendentes: a raça de Canaã será submetida a Sem, antepassado de Abraão e dos israelitas, postos sob a proteção especial de Iahweh (ou Jeová), o deus israelita, e a Jafé, cujos descendentes prosperarão ás custas de Sem.
A situação histórica a que se refere este texto (cuja redação final é de muito tempo depois) seria a do reinado de Saul e do começo do reinado de Davi (os dois primeiros reis do Israel, do século XI ao X a. C.), ocasião em que os israelitas (das montanhas) enfrentavam as cidades-estados inimigas de Canaã e os filisteus (da planície), pelo cumprimento da promessa de Iahweh de que aquela terra tão fértil seria herdada por eles. Portanto, a inimizade entre os dois povos (israelitas e cananeus) possui no texto de Gênesis uma origem histórica, mas que recebe também e principalmente uma explicação teológica bem própria do Antigo Testamento.
A África entrou nesta história por conta do pastor Marcos Feliciano e seus adeptos da inerrância. Entre os outros irmãos de Canaã estão Mesraim que se refere ao Egito, país do norte da África, mas que nunca fez parte da África Negra, nem à época dos faraós e da redação final dos textos bíblicos, e Cuch que o próprio Antigo Testamento tem dificuldade de situar geograficamente, pois seus descendentes podem ser encontrados desde a Etiópia/Sudão, no nordeste da África, das duas margens do mar Vermelho (africano e árabe-asiático) até a Mesopotâmia (Gênesis, 10:8-10). A ilação apressada do pastor se baseia na informação de que Mesraim e Cuch são povos/países africanos e que, portanto, a maldição de Noé se estenderia para todos os povos do continente, inclusive os negros.
Pastor, a miséria da nossa mãe África nada tem a ver com o Deus israelita e cristão. Tem a ver sim com a maldição humana. Tem a ver sim com a espoliação de que ela foi vítima do imperialismo europeu-cristão desde a época da expansão marítima dos séculos XV e XVI da nossa era até os dias atuais. Tem a ver com os milhões de seres humanos, como nós, que de lá foram arrancados para o trabalho escravo nos canaviais, nos cafezais (inclusive nos de Ribeirão Preto e da nossa região) e nas minas de ouro e diamantes do nosso Brasil colônia e império, trabalho escravo prestado para os brancos cristãos. Isso sim ofende a Deus e mereceria uma maldição dEle. Isso sim mereceria da parte de todos nós um “mea culpa” civilizacional, um arrependimento sincero da nossa sociedade.
Pela sua fé, pastor, deixe Deus fora disso, e passe a estudar mais a Palavra, sua exegese e sua hermenêutica. Com certeza, Deus ficará muito satisfeito, pois já no Antigo Testamento seus profetas advertiam: “O meu povo é destruído por lhe faltar conhecimento” (Oséias 4:6) e até Jesus não deixou por menos: “Errais em não conhecer as escrituras e nem o poder de Deus”. (Mateus 22:29).
Já que entramos na visão cristã, outra rápida advertência, mas que mereceria até outro artigo, é que os cristãos não estão mais sob a Lei e a Maldição de Deus e sim sob a Graça de Deus (apesar de muitas confusões feitas por muitas igrejas e seus teólogos, como o pastor Marcos Feliciano). O sacrifício da cruz os libertou da Lei e da Maldição!
No Antigo Testamento há decálogos e leis que regulavam a conduta do israelita. A tradição rabínica possuía até 613 preceitos, 248 mandatos e 365 proibições. Um mestre da Lei perguntou certo dia a Jesus qual é, dentre todos esses, o mandamento mais importante. Jesus resume todos os mandamentos em dois, igualmente importantes e inseparáveis: o amor a Deus e ao próximo (Mc 12:28b-34). Quem ama a Deus deve amar o filho de Deus, ou seja, o próximo. E não me venham com polêmica anticristã de criaturas versus filhos de Deus... Tudo o mais é conseqüência do amor a Deus e ao próximo!
Já passamos pela Antiga Aliança, estamos na Nova Aliança. Sem dúvida, o Antigo Testamento tem valor para aos cristãos tanto quanto o Novo Testamento, pois acreditamos, pela fé, que a obra da Criação se completa e se encerra com a Salvação. É a História da Salvação narrada nos dois Testamentos. Mas temos de compreender o Antigo Testamento à luz do Novo. Se não fizermos isso, pastor, estaremos deixando de ser cristãos e... voltando a ser judeus. O Antigo Testamento também é a Palavra de Deus porque a nossa fé é concreta, encarnada, perpassa historicamente tofa a humanidade em todos os tempos desde a Criação. Deus quer que compreendamos e vivenciemos bem a sua Palavra, para a sua maior glória, utilizando para isso as ciências bíblicas.
E para a Salvação, o Salvador só nos deixou um mandamento: “amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos” (Lucas, 10:27). Na verdade um único mandamento, pois um não subsiste sem o outro. Portanto, meu caro pastor, pare de propagar maldições hereditárias do Antigo Testamento, acredite mais no amor de Deus! Deus ama e quer que amemos uns aos outros e não discriminemos, muito menos discriminemos em nome dEle. Nosso Deus não amaldiçoa a ninguém e a nenhum povo! Nosso Deus nos ama abundante e gratuitamente e provou isso com o sacrifício de seu Filho unigênito na Cruz.
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