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quarta-feira, 9 de maio de 2012

Direito à moradia e mobilização social: um breve panorama das condições habitacionais em Ribeirão Preto



Fabiana Severi. Marcio H. Ponzilacqua. Cynthia Carneiro (Organizadores)
Direitos Humanos em Ribeirão Preto - SP 2012
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto
NAJURP/

Direito à moradia e mobilização social: um breve panorama das condições habitacionais em Ribeirão Preto
Ana Claudia Mauer
Nádia Assis Batistteti Lima

1. Direito à moradia na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 representa um marco na história brasileira, sobretudo no que diz respeito às garantias individuais e sociais, identificadas, por tal documento, como os valores máximos de nossa sociedade.
Eleita como valor supremo encontra-se a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito Brasileiro (Art. 1º, III CF). Objetivos também fundamentais do Estado Brasileiro são, como prevê o artigo 3º, “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ainda dispõe, no artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (...) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, propriedade esta que deve atender à sua “função social; e que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”.
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Em seu artigo 6º, define serem “direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.
Faz-se necessária a menção, também, do artigo 225, que reitera o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, e o dever do Poder Público e da coletividade de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
A Constituição Brasileira também determina a competência das unidades federativas e, dentre essas, a competência dos Municípios de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (Art. 30, VIII CF), também o artigo 182, sobre a política de desenvolvimento urbano executada pelo Poder Público municipal, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
Para exercer suas funções, o Município deve seguir os ditames de sua Lei Orgânica e efetivar o que for proposto no seu Plano Diretor.
Como se pode observar, é previsto na Constituição Federal, o primeiro documento legislativo na ordem hierárquica das leis brasileiras, o direito à moradia, como um direito social, isto é, inerente a todos os brasileiros e que implica ao Estado, representado por suas unidades federativas, o dever de sua promoção e proteção.
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Ao contrário do senso comum empregado à expressão “direito à moradia”, esta não se restringe ao elemento material, isto é, à casa construída, e ao direito de propriedade a ela vinculado. O direito à moradia não é o direito de possuir um bem, ou pelo menos não se restringe a isso. Não basta, ainda que seja de extrema importância, ter um teto sobre a cabeça se não há acesso a uma qualidade de vida decente; digna.
À luz do princípio da dignidade da pessoa humana, então, a garantia do direito de moradia abrange também as condições necessárias para que haja qualidade de vida, e não só a simples habitação. É uma porta de acesso a outros direitos, como saúde, educação, trabalho, meio ambiente saudável, segurança, entre outros, sendo obrigação do Poder Público a garantia dessas condições dignas compreendidas no direito à moradia.
Os processos de desfavelização são exemplos da abrangência desse direito. Realocam-se as famílias a conjuntos habitacionais, lugares em que normalmente não há postos de saúde, escolas, mercados, opções de transporte público, além de serem, na maioria dos casos, distantes de onde viviam e, portanto, distantes de sues locais de trabalho. Além dos maiores gastos com transporte, para ter acesso aos serviços mencionados acima, as pessoas pagam prestações do imóvel adquirido, contas de luz, de água, de gás... Ficando impossível manter-se em tais locais. Como será visto posteriormente.
Percebe-se, assim, que não basta proporcionar a estrutura física da casa, mas o acesso a toda uma infraestrutura e serviços mínimos para
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uma vida digna. Logo, é necessário salientar que, sendo eleito como valor supremo da Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana deve ser observada com prioridade na ponderação com os demais direitos da pessoa, como a propriedade.
O direito à propriedade não se sobrepõe ao direito à dignidade. E isso parece que não é muito claro na contemporaneidade, uma vez que predomina a concepção de que o acesso à moradia se dá via consumo, não como um direito humano.
Desde os anos 1980 e 1990, verifica-se como fenômeno internacional a transformação da moradia como um direito para a moradia como mercadoria, um objeto de consumo a ser produzido e adquirido no mercado. Mais que produto, a moradia virou um ativo financeiro, isto é, sujeito à especulação do mercado. Tanto isso é verdade que a adoção desse paradigma foi um dos elementos que gerou a crise econômica atual, iniciada em 2008.
Concomitantemente, o Brasil vive um momento de expansão e desenvolvimento econômico. Esse avanço deu grande impulso aos processos de espoliação e concentração da riqueza que, historicamente, sempre estiveram ligados à questão do acesso à terra, tanto no meio urbano quanto no rural. Essa concentração e espoliação, por meio da especulação imobiliária, por exemplo, aliada à visão mercantilizada do direito à moradia, minam esse direito e, gradativamente, desconstituem os avanços legais.
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2. Direito à moradia e a situação atual brasileira
Nunca houve tanta disponibilização de crédito e recursos orçamentários públicos para a produção de moradia como está havendo nos últimos anos, inclusive para o grupo que concentra a maior parte do déficit habitacional, aquele que historicamente mais demandam intervenção pública: a população que dispõe de zero a três e de três a cinco salários mínimos de renda familiar.
São exemplos desse forte investimento programas federais como o “Minha Casa Minha Vida”, a urbanização de favelas por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) das Favelas. Desde a aprovação, em 2005, do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Nacional (SNHIS), instituiu-se um pacto federativo entre União, estados e municípios que visa subsidiar a produção de moradia para a população que mais precisa.
Entretanto, o que vem ocorrendo, nas últimas décadas, é um aumento dos conflitos por moradia no país. Aparentemente um paradoxo, já que dado a tamanho investimento espera-se melhora nesse setor de desenvolvimento social, o que se vê é a emergência de várias disputas acirradas e, por vezes, violentas.
Segundo Rolnik54, a explicação para essa situação, em linhas gerais, é que
a própria expansão de crédito e a política habitacional, na ausência de uma diretriz urbana,
54 ROLNIK, R. Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil. Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 5, número 55, 2012, p. 4.
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de uma política fundiária, da aplicação do Estatuto da Cidade e de mecanismos de controle da transferência da riqueza produzida socialmente para a terra e os imóveis, acabam por exacerbar os conflitos.
Em outras palavras, ainda que haja recursos, deve haver maior planejamento urbano, tanto no sentido de que a produção de novas moradias não é a única opção, tampouco áreas periféricas da cidade, uma vez que há como reciclar as áreas centrais precárias ou mesmo recuperar o que já foi construído com precariedade pela população, quanto no sentido de propiciar a infraestrutura necessária para que se efetive o direito à moradia.
O que se nota é uma política habitacional precária e imediatista. O principal objetivo desse investimento, como explica a Rolnik55, é promover uma:
dinamização econômica para enfrentar uma possível crise e gerar emprego”, porém, “completamente desconectada e uma política de ordenamento territorial, fundiária, de intervenção e modernização do espaço urbano a fim de disponibilizar terra bem localizada para a construção de moradia popular.
Logo, o Poder Público, que se comprometeu a construir uma sociedade livre, justa e solidária, ao erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades, promovendo o bem de todos, sem distinção (Art.3º CF), comporta-se, na realidade de maneira contrária a essas expectativas, ou, ao menos, deixa muito a desejar.
55 ROLNIK, R. Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil. Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 5, número 55, 2012, p. 5.
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Embora tenha representado grande avanço o reconhecimento formal dos direitos individuais e sociais, tal garantia e proteção não se verifica na prática. Ao menos não a todos.
Não notamos o esforço dos governos em empreender projetos, planejamentos, modelos de reabilitação, expansão e reciclagem das cidades, isto é, refazer área que já estão feitas e recuperar o que foi construído com precariedade pelo trabalhador com seus próprios recursos, além da expansão da cidade. O que se vê são megaprojetos excludentes, projetos de enobrecimento, expulsão da população, mudança de patamar econômico da área e valorização imobiliária, como o Porto Maravilha, no Rio, e a Nova Luz, em São Paulo.
Isso não significa que não houve avanços significativos em benefício dos mais necessitados por meio de ações governamentais. Contudo, ainda que haja a preocupação em desenvolver o setor habitacional nos Planos Diretores Municipais, e haja a previsão de projetos e programas da prefeitura, em parceria com a COHAB e entidades privadas, para suprir às demandas relacionadas ao direito à moradia, na prática, todas as promessas e todo o peso dado para tais preocupações não se conjuga com a realidade; com as atitudes do Poder Público para efetivá-las. Como já foi dito, essa não é a prioridade de fato.
O modelo de gestão brasileiro, em geral, é dominado por coalizões. Os interesses empresariais em torno da terra são articulados aos interesses das empreiteiras, que produzem infraestrutura, e aos interesses dos grupos políticos. Financiadas as suas campanhas pelos
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grupos supracitados, viabiliza-se a reprodução de seus mandatos, o que perpetua a falta de planejamento da expansão urbana, visando o bem de todos.
Em razão dessa falta de compromisso real com as pessoas, percebe-se a insurgência e organização de movimentos sociais, que atuam como interlocutores da população com os órgãos estatais. Um exemplo de sua atuação, entre outras de destaque, é a participação na formulação de políticas públicas por meio dos Conselhos municipais e estaduais e do Conselho Nacional das Cidades.
No entanto, os processos decisórios reais não passam por essas instâncias participativas, mas pelos poderes executivo municipal e estadual e, no caso Minha Casa Minha Vida, o setor empresarial da indústria e da construção civil.
O acesso à terra também deve ser uma questão de extrema importância, principalmente com a concentração de riquezas que verifica-se atualmente. A população mais pobre não tem como competir com o poder de compra que demanda o mercado. Com a especulação imobiliária, o que se vê é o aumento da disputa pela terra. A terra que não era de interesse do mercado transforma-se em nova fronteira de sua expansão. Isso implica a remoção e deslocamento de comunidades que historicamente viviam naquela determinada área e lá teriam o direito de permanecer.
Sem alternativas, essa população passa ocupar novas áreas e a competir por elas, tanto com outras pessoas na mesma situação quanto com o mercado imobiliário.
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Um exemplo disso é a condição em que se encontram a população que concentra a maior parte do déficit habitacional, o grupo de zero a três salários mínimos de renda familiar, nas grandes metrópoles, onde o solo é mais caro. Nessa situação, o programa Minha Casa Minha Vida não possibilita o acesso à moradia para essa faixa da população. O caso recente da comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos, é um exemplo categórico dessa infeliz situação.
3. O Caso Pinheirinho
Dizer que é uma infelicidade é pouco. O que ocorreu em São José dos Campos é a trágica síntese da conjuntura nacional no que diz respeito à violação do direito à moradia, bem como de outros direitos fundamentais.
No dia 22 de janeiro deste ano, sob ordem judicial, a Polícia Militar promoveu a remoção compulsória da população de baixa renda que habitava a Ocupação Pinheirinho. Com extrema truculência, a polícia expulsou cerca de 1.600 famílias (aproximadamente 8 mil pessoas) submetendo ao sofrimento e humilhação os moradores daquela comunidade, incluindo crianças, idosos e deficientes.
São José dos Campos é uma cidade consideravelmente rica para os padrões nacionais, inclusive do estado de São Paulo (é a 3ª maior economia do estado). Não tem tantos problemas quanto a recursos financeiros e investimentos e é considerada um exemplo de cidade moderna e desenvolvida.
Os recentes acontecimentos não só revelaram a face desumana de São José ao registrar violações de direitos por parte da polícia e do
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próprio Estado, mas também alertam para o modelo de desenvolvimento pautado pelo lucro, como já foi explicado, em detrimento do bem-estar da maioria da população.
O caso Pinheirinho explicita a política de exclusão social que criminaliza a pobreza praticada já há anos, em várias regiões do país. Utilizando de meios legais, como o a ação de reintegração de posse, o poder público faz o uso da força para remover a população carente dos locais em que há tempo viviam e que ocuparam determinada região por falta de oportunidade de acesso à terra; de acesso à moradia digna e tudo que esta abrange.
É comum que as pessoas removidas sofram novos processos de remoção, cada vez para bairros mais periféricos, onde não é, normalmente, oferecida infraestrutura básica, como luz, transporte, saúde e educação, nem perspectivas de trabalho, o que coloca as famílias em situação de extrema vulnerabilidade. E o Poder Público também mostra-se negligente, sonegando o acesso e atendimento à saúde nesses locais, por exemplo, ou excluindo-os de outros programas sociais.
O que se vê, também, é a iniquidade. Como é de praxe, são cometidas irregularidades durante todo o processo de remoção, não só o ato em si, como as decisões judiciais, manipulações de prazo para a remoção, entre outros. No caso do Pinheirinho, as comunidades afetadas não participaram das discussões e definições quanto ao seu próprio destino. A alegação de que a área era de risco e, por isso, as pessoas teriam de ser removidas, foi desmentida posteriormente por
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técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e do Laboratório de Urbanismo e Habitação da USP. Não foram oferecidas outras opções de moradia ou compensação às comunidades afetadas. Moradores foram ameaçados ou cooptados. Além do fato das famílias terem sido removidas mediante força policial, após terem sido enganadas quanto ao dia da execução da ação de reintegração de posse, dentre outros procedimentos e atitudes duvidosas.
Depois de ter agido enfaticamente para a remoção das famílias, com as mais diversas alegações e justificativas – que, no caso, foi dado à “área de risco” – , vem sido adensada a construção de edifícios de apartamentos para a população rica. O mesmo ocorreu na mesma cidade com os moradores das favelas da Vila Nova Tatetuba, Caparaó e Nova Detroit, onde, após as remoções, foram construídas nessa mesma região empreendimentos de grande porte, como o hipermercado Carrefour, uma fábrica e apartamentos financiados pela Caixa Federal.
4. Ribeirão Preto
Na cidade de Ribeirão Preto verificam-se problemas e situações semelhantes ao ocorrido em São José dos Campos na Ocupação Pinheirinho. Entretanto, o caso em Ribeirão, além da questão dos efeitos da propriedade (tanto particular quanto pública) ociosa, contém a peculiaridade da polêmica gerada pelo projeto de ampliação e internacionalização do Aeroporto Leite Lopes, iniciada com a construção de um Terminal de Cargas.
O projeto de ampliação do aeroporto data da década de 1990. Em 1997, foi desenvolvido um projeto de viabilidade de ampliação
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(visando à internacionalização) do aeroporto Leite Lopes por uma empresa estadunidense, fundamentado em um estudo financiado pela Trade Development Agency (TDA) – órgão dependente do Departamento de Estado do governo dos Estados Unidos da América.
A prefeitura municipal à época, administração do Prefeito Roberto Jábali (PSDB), aprovou o projeto. Foi acusada, entretanto, de não observar os termos do Plano Diretor (Lei Complementar 501/95). Tampouco os estudos foram validados pelo Ministério Público, pois ignoravam a obrigatoriedade do EIA RIMA (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental). No mesmo ano, a Câmara Municipal de Ribeirão Preto aprovou o projeto de ampliação após constituir uma Comissão Especial de Estudos (Resolução 43/97) para análise da proposição.
Em 2001, foi aberta licitação para terminal de cargas internacional sendo a outorga de internacionalização do aeroporto apenas posteriormente requisitada e, em 2005, é criado o movimento Decola Ribeirão (apelidados de Degola Ribeirão por não apresentarem os estudos ambientais necessários), favorável à ampliação.
Criticados, elaboram o EIA-RIMA, mas os resultados do relatório geraram polêmica ainda maior, pois a área do aeroporto é apontada como a melhor dentre as estudadas, o que levantou suspeita de manipulação de dados. Outro ponto controverso é a suposta deficiência de informações, tais como o risco viário, a presença de urubus no aeroporto e o risco para as crianças que moram na região e brincam de empinar pipas.
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Em 2007, o DAESP (Departamento Aeroviário do Estado de São Paulo; órgão administrador do aeroporto) arquiva e desiste do EIA-RIMA e dá início ao diálogo entre Ministério Público e a instituição para acordo judicial no qual se formaliza o compromisso da não ampliação do Aeroporto Leite Lopes.
Contudo, em 2011, a prefeitura municipal (gestão Dárcy Vera) insiste na ampliação da pista do aeroporto em 300 metros e anuncia que tentará anular o tratado de acordo (TAC) judicialmente. Neste mesmo ano, o governador Geraldo Alckmin se manifesta favorável ao projeto de ampliação.
Como pretendido, a prefeitura elabora e apresenta o projeto executivo de ampliação apelidado de “puxadinho”, por meio do qual se desviaria a av. Thomas Albert Watelly para ampliação da pista, sendo que a principal crítica ao projeto se fundamenta na ausência de estudos de impactos sócio-ambientais.
Em abril do mesmo ano o Governo do Estado cede para o DAESP um terreno ao lado do aeroporto para a futura ampliação (terreno de 300 m²). Em agosto, é anunciada a proposta de internacionalização, denominada “Puxadão”.
A Prefeitura Municipal coloca na revisão da Lei do uso e Parcelamento do Solo as áreas a serem desocupadas de residências para se tornarem industriais ou comerciais, com base no Estudo de Zoneamento de Ruído que ainda não foi aprovado pela ANAC.
É notório que o aeroporto ainda hoje não possui rede de esgoto canalizada e por estas deficiências, dentre outras estruturais e de cunho
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fortemente social, certa parcela da população organizou-se em movimentos contrários à ampliação do aeroporto na localidade atual. Dentre estes, o Movimento Pro Novo Aeroporto Regional de Ribeirão Preto o qual possui como diretriz majoritária a construção de novo aeroporto regional em outra localidade diversa do Jardim Aeroporto.
A divergência nessa questão não se encerra na necessidade de um aeroporto com melhor infraestrutura e com capacidade para abarcar voos internacionais. Os movimentos reconhecem esta demanda, posto que Ribeirão Preto é um polo agroindustrial em franco crescimento. A discórdia dos grupos (Movimento Decola Ribeirão e Movimento Pro Novo Aeroporto Regional de Ribeirão Preto como maiores representantes desse antagonismo) está nos liames do projeto.
Enquanto o primeiro grupo defende a rápida ampliação com a construção do terminal de cargas alfandegado, o segundo critica tal projeto em virtude da má estrutura do aeroporto atual, das lacunas do projeto em importantes questões urbanísticas e principalmente dos danos e violações causados à população residente nos arredores.
O aeroporto situa-se na zona norte da cidade, região que concentra a maior parte de núcleos de favelas do município. A coexistência das submoradias e do aeroporto (com mera acomodação de transporte mais digna do os 3916 barracos da região obtém para abrigar seus moradores) ilustra o quanto a desigualdade ainda fere os direitos sociais garantidos pela Constituição Cidadã.
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5. Dados Estatísticos e Casos Reais
No Brasil o déficit habitacional56 abarca por volta de 7,2 milhões de moradias enquanto Ribeirão Preto está em torno de 30 mil. Em 2010, havia 44 núcleos de favelas nos quais 4% da população ribeirão-pretana residia. A Zona Norte da cidade possui a maior concentração de favelas com 27 núcleos nos quais habitam 19 005 pessoas (correspondente a 75, 60% da população em situação semelhante na cidade) ocupando uma área de 455 914 m² (de 713 950 m² no total). Nesta região encontravam-se as favelas de: Itápolis, da Mata, Adamantina, do Brejo, da Família e diversas outras.
As áreas referidas do Jardim Aeroporto e arredores foram ocupadas por famílias, bairros construídos (até mesmo pela COHAB) e núcleos de favelas, desde a década de 50. No entanto, com a construção do terminal de passageiros e transformação do “campinho de aviação” em aeroporto e a consequente pela ampliação do porte das aeronaves que começaram a operar a partir de 1980, houve expansão da curva 2 de ruído. Esse fato aliado ao interesse de particulares em retomarem suas terras (ociosas), a administração pública iniciou o processo de desfavelamento da área.
Algumas famílias instaladas nas Favelas de Itápolis, Adamantina e da Mata foram removidas para casas financiadas, enquanto as demais foram expulsas da área com força policial, e sem
56 Fundação João Pinheiro. Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil. Belo Horizonte: Projeto PNUD-BRA-00/019 - Habitar Brasil – BID, 2005.
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outro suporte, por não constarem em determinado cadastro antigo. Essas famílias ocuparam outro terreno próximo, também ocioso e pretensamente à espera de especulação imobiliária, valorização essa promovida pela possível construção do Terminal de Cargas Alfandegado. Denominaram-na Favela da Família.
Entretanto, foram expulsas dessa área em operação policial. Atualmente ocupam outro terreno particular em condições impróprias e não estão incluídas em qualquer tipo de programa de assistência do poder público.
A problemática da região não envolve somente as famílias que sofreram o descaso e violência do poder público quanto ao seu direito a moradias dignas, sendo expulsas sem qualquer assistência, mas também aquelas que foram removidas e relocadas em outra área. Sofreram, estas, o despreparo do Poder Público em lidar com a desfavelização.
As famílias foram transferidas para bairros distantes, longe de suas raízes sociais, empregos, escolas e meios de subsistência. Alguns moradores reclamam dos serviços públicos deficitários ou a ausência destes nos novos bairros e conjuntos habitacionais (como Paiva e Wilson Toni), tais como transporte e acesso a posto de saúde.
Há um complexo de direitos sociais fundamentais que compõem a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, que não se limitam a uma parede artificial, como já dito. Acrescenta-se ao acesso ruim a serviços básicos, a ausência de preparo prévio das famílias quanto aos equipamentos comunitários e as condições locais de moradia.
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O desrespeito e desconsideração das opiniões dos moradores não impressionam tanto devido à falsa impressão de que essas famílias “ganharam” essas casas, por mera caridade, e que por tal não podem fazer exigências. “Não ganhamos a casa, ganhamos um carnê para pagar, como qualquer outro imóvel no ramo imobiliário” (frase dita por um morador de conjunto habitacional da cidade).
Por fim, devido a vários problemas, como a distância do emprego ou meio de subsistência o que implica um aumento nos gastos familiares, diversas famílias abandonam suas casas e as vendem e muitas acabam por voltar a morar em submoradias em novas favelas.
Os recentes acontecimentos sociais e políticos - desapropriação violenta da região do Jardim Aeroporto, realocação das famílias para áreas mal estruturadas, e outros - acabaram por sensibilizar e mover parte da sociedade civil, em vários segmentos; como arquitetos, promotores, professores, advogados, os próprios moradores (tornaram-se engajados em associações e outros movimentos de defesa dos direitos sociais); que se organizou formando grupos de defesa de direitos e conscientização, tais como:
 Movimento Pro Moradia e Cidadania (Teve início com as condições degradantes e violentas da desocupação da Favela de Itápolis e depois com a da Família e fortaleceu-se com as ações em prol da cidadania na Favela do Brejo);
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 Comitê de Crise (Criado por representantes da sociedade civil para evitar que episódios como a desocupação em julho de 2011 se repitam);
 Movimento Pro Novo Aeroporto Regional de Ribeirão Preto (Defesa de um novo aeroporto regional em uma área mais apropriada para que não ocorra a mesma situação de Congonhas em São Paulo);
 Associações de moradores;
 Associações de Moradores do Jardim Aeroporto;
 Movimento “Decola Ribeirão” (Composto por indivíduos que apoiam a ampliação e internacionalização do Aeroporto Leite Lopes).
Conclusão
Constata-se, então, que Ribeirão Preto, assim como São José dos Campos, é um exemplo do que ocorre no cenário nacional. Isto é, em linhas gerais, o descaso com as reais necessidades da população sem acesso à moradia digna, que são deixadas vulneráveis. Uma visão de que qualquer investimento, qualquer movimento por mínimo que seja em direção à melhora das condições de moradia é uma caridade, uma “bondade” do Poder Público, que se coloca numa posição tanto paternalista quanto indiferente, de quem “já fez muito e não podem reclamar”.
Esquecem que a garantia do direito à moradia é um DEVER do Estado, composto por todos os funcionários de seu aparato e, maneira mais extensa, também a própria sociedade civil, que precisa reivindicar, se indignar e reclamar esses direitos. A sociedade como um todo, não só as minorias.
Mais além, o descaso com as próprias pessoas, uma vez que são constantemente ludibriadas, tratadas com indiferença, suas demandas manipuladas para concretizar interesses político-econômicos, retiradas frequentemente de onde estabeleceram domicílio e, por vezes (e não são poucas), lidadas com força policial e violência.
Esquecem também que o direito à moradia não se restringe ao acesso à habitação, dando margem para a mercantilização desse direito, desvirtuando-o em favor de interesses particulares.
Em síntese, nota-se que, há elementos favoráveis ao acesso ao direito à moradia, ou seja, as garantias legais para efetivar esse direito, presentes na Constituição Federal, na Constituição Estadual, na Lei orgânica Municipal de Ribeirão Preto, e no Plano Diretor; os grandes investimentos no setor (Minha Casa Minha Vida, PAC das Favelas, etc.); o desenvolvimento econômico; a criação de órgãos governamentais (COHAB, CDHU...) e o a força dos movimentos sociais.
No entanto, os direitos previstos em todos esses documentos legais ainda não foram efetivados e, mais que isso, e principalmente, não são prioridade nos interesses do Poder Público, que prioriza os interesses da elite econômica.
No plano das ideias, da teoria, da palavra escrita, do discurso, o direito à moradia é dever do Estado, das suas unidades federativas, de
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seus órgãos, de seus funcionários e representantes, para promover o bem-estar geral e todos os preceitos contidos nos primeiros artigos da Constituição Federal, sem distinção de qualquer natureza, sem discriminação, tendo em vista a garantia do meio ambiente saudável.
É como a metáfora de Raimundo Faoro a respeito da efetivação dos direitos constitucionais: “a roupa está no armário recortada envolta em naftalina, pronta para ser vestida, quando o corpo cresça e saiba usá-la sem rasgá-la. Enquanto esse dia não chega, os detentores do poder mandam e desmandam”.

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