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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Nota Pública Contra a Remoção Forçada do Núcleo de Favela João Pessoa e pela Garantia do Direito à Moradia Digna

Nos ajudem a pressionar a juíza para pedir a intervenção do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP) do Tribunal de Justiça de São Paulo no processo de reintegração de posse que estamos sofrendo!!! Compartilhe, divulgue, peça a assinatura de mais movimentos!!!

Comunidade João Pessoa
Nota Pública Contra a Remoção Forçada do Núcleo de Favela João Pessoa e pela Garantia do Direito à Moradia Digna

O Núcleo de Favela João Pessoa é uma ocupação urbana estabelecida no entorno do Aeroporto Estadual Dr. Leite Lopes há mais de 25 anos e que hoje se encontra em iminente ameaça de despejo. Com a retomada do projeto de ampliação e internacionalização do Aeroporto, as Comunidades da Av. João Pessoa e Rua Nazaré Paulista, que integram este núcleo, passaram a sofrer ameaças de remoção forçada tanto pelo Poder Público quanto por particulares. Por isso, nos últimos 5 anos as moradoras e moradores do Núcleo João Pessoa vêm lutando para garantir seus direitos, especialmente o direito humano à moradia adequada.
Com a divulgação na imprensa de que as obras se iniciariam em setembro deste ano de 2015, e com a recente decisão judicial de despejo dessas famílias, as ameaças de remoção tornaram-se realidade. A decisão do dia 10/08/2015 determinou a remoção imediata de cerca de 150 famílias, sem que, até o momento, sejam garantidas condições dignas de moradia, e deverá ocorrer nas próximas semanas!
Por mais de 30 anos, os supostos proprietários não deram qualquer uso a essa grande área. Os terrenos abandonados eram utilizados para depósito de lixo e desova de corpos de animais, o que além de afetar a saúde pública, também prejudicava as operações de pouso e decolagem de aviões, devido ao intenso fluxo de urubus que havia no local.
A situação era tão grave que o Ministério Público do Estado de São Paulo exigiu que fosse destinado algum uso útil para os terrenos, respeitado também o meio ambiente, agendando, então, uma audiência com os supostos proprietários da área. Na data agendada, representantes da Imobiliária San Marino e da Construtora Stefani Nogueira compareceram à audiência alegando ter interesses na limpeza do loteamento, já que eram “parceiros” dos supostos proprietários. Apesar de firmado um acordo entre o Ministério Público e os “parceiros”, a área permaneceu abandonada e sob a ação da especulação imobiliária, até a ocupação de famílias que, estas sim, deram uso à propriedade.
Com a ocupação do local por famílias de trabalhadores migrantes do campo e de outras regiões pobres do país, o terreno passou a ser limpo, cuidado, e utilizado para fins de moradia, passando a cumprir sua função social. São empregadas domésticas, auxiliares de limpeza, pedreiros, vigilantes, porteiros, mecânicos, metalúrgicos, e outros trabalhadores e trabalhadoras que depositaram todas as suas economias e tempo livre na construção de suas casas nessa área antes completamente abandonada.
Agora, por conta do interesse dos governos municipal, gestão Dárcy Vera (PSD), e estadual, Geraldo Alckmin (PSDB) - e mais recentemente também federal com a aprovação de recursos do PAC - na execução de um megaprojeto de infraestrutura na região, a área passou a ser alvo de especulação de grandes investidores, inclusive do setor imobiliário local. Tanto o próprio projeto de expansão do Aeroporto Leite Lopes quanto esses interesses econômicos têm desconsiderado o interesse público e vêm desencadeando uma série de violações de direitos fundamentais da população que reside no entorno do Aeroporto.
Desde 2010, a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, por meio da Política Municipal de Desfavelamento (eliminação de favelas), têm promovido remoções forçadas nas ocupações urbanas do entorno do Aeroporto Estadual Dr. Leite Lopes. Também o Poder Judiciário, ao ser provocado por particulares, tem se posicionado favorável aos despejos forçados, desconsiderando a obrigatoriedade do cumprimento da função social da propriedade e da garantia do direito à moradia digna e do direito à cidade.
Antecipando a execução do projeto de ampliação e internacionalização do Aeroporto, as medidas da Prefeitura Municipal, reforçadas por decisões judiciais de reintegração de posse, têm despejado centenas de famílias de trabalhadoras e trabalhadores pobres. Essas remoções forçadas têm ocorrido sem que ao menos fosse garantida a participação dessas famílias nesses processos, seja nos andamentos judiciais, seja na realização das políticas públicas. Comunidades como a Favela Adamantina, Itápolis, da Mata, entre outras, são exemplos dessas intervenções violentas e da ausência de uma gestão democrática da cidade e da promoção de direitos fundamentais e sociais pelo Poder Público local, que deve ser realizada em um Estado Democrático de Direito.
Em setembro de 2011, a reintegração de posse da Favela da Família foi um marco do grau de truculência e de criminalização da pobreza com a qual o Poder Público vem tratando a questão das favelas em Ribeirão Preto, especialmente em relação aos moradores e moradoras de ocupações urbanas da região do entorno do Aeroporto. Foram despejadas 600 pessoas pela Polícia Militar, dentre elas crianças, adolescentes idosos, deficientes e gestantes, com a utilização de cães, cavalos, gás lacrimogêneo, balas de borracha e outros meios violentos de intimidação e agressão. Pela brutalidade das ações e das diversas irregularidades no processo, o caso obteve grande repercussão nacional.
Depois de quase 5 anos da violenta remoção da Favela da Família, cerca de 150 famílias do Núcleo João Pessoa, algumas residentes há mais de 15 anos no local, correm o risco de serem jogadas na rua à própria sorte! As irregularidades no processo, a ausência de possibilidade de defesa, o uso de força policial e o despejo de famílias de trabalhadores e trabalhadoras estão se repetindo. Até quando o direito constitucional à moradia digna será tratada como caso de polícia em Ribeirão Preto? O problema do défict habitacional será resolvido com lei e política, e não com polícia!
No dia 24 de junho de 2015, as famílias do Núcleo João Pessoa receberam notificação de despejo sobre um processo de reintegração de posse que corre na 9ª Vara Cível de Ribeirão Preto, do qual nunca fizeram parte e sem ao menos terem a possibilidade de oferecerem defesa. Mais que isso, quem entrou com a ação de reintegração de posse foram os advogados representantes de poderosos grupos econômicos do setor imobiliário, a imobiliária San Marino e a construtora Stéfani Nogueira, empresas interessadas na valorização das áreas em decorrência do projeto de expansão do Aeroporto.
A voracidade da especulação imobiliária foi tão grande que a ação de reintegração de posse foi movida sem sequer ter sido apresentada uma procuração adequada que possibilitasse a representação legal dos antigos proprietários. Os antigos proprietários já são falecidos, e há mais de 30 anos seus bens ainda não foram partilhados. Nem as imobiliárias nem os antigos proprietários têm exercido a posse sobre o local por décadas!
O documento apresentado inicialmente pelos “representantes dos proprietários” foi um alvará judicial que lhes concedia apenas poder de alienação dos lotes, o que ficou expresso em uma decisão judicial datada de 10 de novembro de 2014, na qual ainda foi INDEFERIDO o pedido de representação de terceiros, nos seguintes termos: “(...) não cabe, em alvará, declaração da existência ou inexistência de direitos ou relações jurídicas; nulidade ou invalidade de atos; condenações, ou suprimento de declarações de vontade; tampouco se pode, por meio de alvará, representar terceiras pessoas, para quaisquer finalidade”.
Além disso, a única propriedade protegida pelo Direito Brasileiro é aquela que atende sua função social, e quem tem garantido isso são as moradoras e moradores do Núcleo João Pessoa, por décadas e com a conivência da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. As ocupações foram sendo estabelecidas, contando, durante anos, com a construção de postos de saúde e escolas, criação de linhas de ônibus na região, e promoção de iluminação pública, coleta de lixo e entrega de correspondência nas comunidades.
Mesmo não sendo os antigos proprietários, mesmo que não estivessem cumprindo a função social da propriedade, e mesmo não provando o exercício da posse sobre o terreno, a Juíza da 9ª Vara Cível de Ribeirão Preto tem acatado às argumentações do mercado imobiliário e desconsiderado a necessária apreciação dos direito à moradia, à cidade, à infância e juventude e outros direitos sociais das famílias ocupantes de tais áreas.
Da mesma forma, os governos municipal, estadual, e federal, responsáveis pelas obras de ampliação do Aeroporto Leite Lopes, têm se omitido nos casos de ordens judiciais de despejos dos moradores e moradoras de favela. Não apenas no caso do Núcleo João Pessoa, mas em casos semelhantes em outras comunidades, têm se ausentado de participar dos processos judiciais com a justificativa de que se trata de um conflito entre particulares, apenas sobre o direito de propriedade. Contrariam o dever jurídico que eles têm de garantir a proteção e efetivação dos direitos fundamentais de tais famílias.
Após receberem a notificação de despejo, em 04 de julho, as moradoras e moradores entraram com uma defesa no processo, através de ação de embargos de terceiro, para que a decisão liminar de remoção fosse suspendida até que todos os argumentos em sua defesa fossem apreciados, bem como fossem garantidos os direitos daquelas famílias de posse antiga. Mas, após quase 20 dias sem qualquer decisão judicial e com a continuidade dos procedimentos para a remoção, as comunidades tiveram que realizar um ato no Fórum no dia 23 de julho para que fossem ouvidas pelo Poder Judiciário.
Com luta social, o povo organizado conseguiu que, no dia seguinte (24 de julho), a Juíza suspendesse o mandado de reintegração de posse. Mesmo com esse fôlego, no dia 10 de agosto foi expedida nova ordem de despejo sem qualquer consideração das defesas apresentadas no processo para a garantia do direito à moradia adequada e dos demais direitos fundamentais dos moradores e moradoras das comunidades, bem como de seus direitos sobre as áreas ocupadas.
A reintegração das áreas que envolvem o Núcleo de Favela João Pessoa não pode acontecer sem que o direito de defesa das famílias seja garantido, de forma ampla e irrestrita, dentro do processo judicial. Além disso, é fundamental que seja estabelecido, um compromisso prévio com a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto e Estado de São Paulo, que garanta que os direitos fundamentais dos moradores sejam integralmente respeitados.
Diante da complexidade dos interesses e demandas envolvidas no processo, e da necessidade de um posicionamento da Prefeitura e do Estado, é urgente e fundamental a atuação no caso do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP) do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP (http://www2.oabsp.org.br/…/clipping…/ClippingJurDetalhe.asp…).
O GAORP é um grupo do TJSP especializado em conflitos fundiários urbanos que atua em casos em que haja iminência de reintegração de posse. Por ser um grupo interdisciplinar, composto por membros dos governos federal e estadual, da polícia, da defensoria pública, do ministério público e do judiciário, tem servido como um espaço interinstitucional de produção de soluções consensuais e menos onerosa possíveis às partes envolvidas e garantia de direitos humanos (http://www.tjsp.jus.br/…/canaiscomun…/noticias/Noticia.aspx…).
Lutamos por um processo de negociação justo e ético, que efetive uma política urbana que atenda aos reais interesses da população, especialmente a que mais sofre com o déficit habitacional. Lutamos pela construção de um Sistema de Justiça realmente democrático e popular, comprometido com a efetivação de direitos sociais e com a redução das múltiplas formas de injustiça e desigualdades que ainda marcam a sociedade brasileira.
Convocamos todas e todos para impedir que esta reintegração de posse e violação de direitos humanos ocorra, de forma a deixar ainda mais todas essas famílias em situação de vulnerabilidade e injustiça social! Apesar da criminalização que sofremos através das imagens deturpadas que os grandes conglomerados de mídia criam para nos enfraquecer, seguiremos mostrando que acreditamos que só a luta do povo organizado é capaz de reais mudanças e transformações sociais.
É com essa convicção e esperança que precisamos do apoio de todas e todos enquanto movimentos e cidadãos!
Ribeirão Preto-SP, Brasil, 20 de agosto de 2015.
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Para saber mais informações de como ajudar, entre em contato pela nossa página, informe-se, posicione-se, divulgue a história que querem negar e silenciar!
facebook.com/pages/ComunidadeJoãoPessoa
facebook.com/pages/Najurp
najurp@gmail.com
Movimentos, entidades e grupos que quiserem subscrever a nota e apoiarem a nossa causa, favor mandar mensagem para a página da Comunidade João Pessoa ou no e-mail do NAJURP.
Assinam essa nota pública:
Moradoras e Moradores da Comunidade João Pessoa; Moradoras e Moradores da Comunidade Nazaré Paulista; Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (NAJURP-FDRP/USP); Movimento Pró-Novo Aeroporto: Congonhas em Ribeirão Não! (MPNA-RP); Movimento Pró-Moradia e Cidadania (MPMC-RP); Grupo de Autogestão Habitacional de Ribeirão Preto (GAHRP).

Subscritores:
Brigadas Populares
Nós da Sul
Movimento Plínio Resiste do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Diretório Nacional do MES/PSOL - setorial negras e negros
Memorial da Classe Operária (UGT) - Ribeirão
Movimento Se Vira - Virada Cultural Independente de Ribeirão Preto
Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil
Organização Não-Governamental Vivacidade - Ribeirão Preto
Coletivo Levante - Ribeirão Preto
Coletivo Fuligem de Comunicação e Arte - Ribeirão Preto
Coletivo Fora do Eixo - Ribeirão Preto
Canto Famintos - Grupo de Teatro da FDRP/USP - Ribeirão Preto
Cia. Humilde de Teatro - Ribeirão Preto
Coletivo Abayomi - Ribeirão Preto
Coletivo Negro da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) - setorial Negras e Negros - Ribeirão Preto
Juntos (PSOL) - Ribeirão Preto
Diretório Central dos Estudantes da Universidade de São Paulo (USP) - gestão Manifesta
Centro Acadêmico Antônio Junqueira de Azevedo (CAAJA-FDRP/USP) - Ribeirão Preto
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (USP)
Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Direito nas Ruas (UFPE)
Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru (UFPB)
Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Negro Cosme (UFMA)
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (UFSC)
Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (UFC)

Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Comunitária Justiça e Atitude (IFC)

domingo, 9 de agosto de 2015

Não é tão simples assim

Publicado em 04/08/2015 por antonioamachado

Todos os brasileiros e brasileiras esperamos, sinceramente, que a corrupção no país seja apurada e que os corruptos sejam punidos. Depositamos grandes esperanças no trabalho da Polícia, do Ministério Público e da Justiça. É bem por isso que muita gente vem aprovando tudo ou quase tudo aquilo que se tem feito no âmbito da chamada Operação Lava Jato.

A opinião pública brasileira está absolutamente convencida de que a corrupção deve ser erradicada a qualquer custo, que os corruptos devem ser punidos de modo implacável, que todos aqueles que lesaram os cofres públicos são verdadeiros bandidos e, portanto, devem mesmo mofar na prisão. É só enfiar os culpados na cadeia e pronto, já teremos “passado o país a limpo”!

Todas essas expectativas são absolutamente compreensíveis neste momento, mas não é tão simples assim.

Segundo a Constituição da República e o Código de Processo Penal brasileiro não se pode fazer uso sistemático de prisões preventivas para apurar crimes, pois, o princípio constitucional da presunção de inocência e a própria literalidade da lei processual penal determinam que esse tipo de custódia, sem condenação, deve ser utilizado em último caso (ultima ratio), em caráter excepcional e não como regra.

Há evidências, porém, de que os responsáveis pela Operação Lava Jato estão utilizando as prisões preventivas de forma equivocada, sem a rigorosa observância dos pressupostos legais exigidos para a decretação dessa custódia provisória, numa verdadeira inversão do princípio liberal da presunção de inocência.

Decretaram prisão preventiva de gente que depois foi absolvida, prenderam gente num dia e soltaram no outro, e prenderam até cunhada de tesoureiro de partido político… Virou a “festa do xadrez”! Não é por acaso que outro dia um ministro do próprio Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, entre surpreendido e alarmado, deixou escapar a alguns repórteres a seguinte exclamação: “nunca vi tanta prisão preventiva”!

A nova prisão do ex-ministro José Dirceu é um exemplo estridente desse uso equivocado da prisão preventiva. De fato, se o ex-ministro tem o direito de cumprir pena em liberdade por força de uma decisão condenatória definitiva, proferida num processo que já acabou, por que motivo ele haveria de ser preso preventivamente no âmbito de um processo que ainda nem começou?

A Constituição Federal, as leis processuais brasileiras e os tratados internacionais que o Brasil assinou impedem o uso de prisões preventivas com a finalidade de obter confissões e delações premiadas, como vem ocorrendo na Operação Lava Jato. Essa prática é expressamente proibida no país porque ela constitui verdadeira tortura psicológica, portanto, uma prova ilícita que o célebre Cesare de Beccaria já condenava veementemente há mais de duzentos anos.

Por força do “princípio do processo acusatório”, consagrado na Constituição Federal de 1988, as funções de investigar, acusar, defender e julgar devem ser realizadas por autoridades distintas. Logo, um juiz de direito que conduz investigações policiais, que decreta prisões provisórias para obter confissões no inquérito policial e que depois profere julgamentos com base nisso tudo, como ocorre na Operação Lava Jato, está assumindo funções inquisitoriais.

Assim é porque, quando um juiz concentra em suas mãos as funções de investigar, de preparar acusações e de prolatar sentenças põe em risco a sua própria imparcialidade, torna o processo inquisitivo e fere frontalmente o princípio do processo acusatório. Com isso, deita por terra também o princípio constitucional do “devido processo legal”, cuja cláusula é uma conquista do liberalismo com origem remota na Charta Magna assinada pelo rei João-Sem-Terra em 1215.

No âmbito da Operação Lava Jato há também uma anomalia processual quanto à competência para julgamento dos crimes relacionados à corrupção na Petrobras. De fato, uma das varas da Justiça Federal de Curitiba tem avocado para si o julgamento de todos esses crimes, como se essa vara fosse uma espécie de “juízo universal”, que exerce a chamada “vis atractiva”, atraindo para si a tarefa exclusiva de julgar todos os crimes relacionados à nossa petroleira.

Com efeito, há mesmo uma anomalia ou irregularidade processual nesse fato que torna os processos nulos, pois, como sabem os juristas, o caso é de incompetência material ou absoluta. Isso acontece porque, como a Petrobras é uma empresa de economia mista, a competência para julgar as causas cíveis e criminais que afetam os seus interesses não é da Justiça Federal e sim da Justiça Estadual comum.

Não acredita? Pois então, é exatamente isso o que diz o art. 109, IV, da CF, bem como a Súmula nº 556 do STF quando determina que “é competente a justiça comum para julgar as causas em que é parte sociedade de economia mista”, e ainda a Súmula nº 42 do STJ quando estabelece que “compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento”.

Esse vício de competência e as sistemáticas violações de direitos e garantias constitucionais, em qualquer processo crime, configuram grave afronta ao “devido processo legal” e ameaçam o próprio Estado Democrático de Direito. Claro que o combate à corrupção é tarefa inadiável, a ser realizada cotidianamente pelas autoridades e por qualquer cidadão, mas é preciso que tudo seja feito dentro dos marcos rigorosos do Estado de Direito, com a estrita observância do princípio da legalidade.

É no mínimo questionável que o combate a um determinado caso de corrupção seja feito à custa do “devido processo legal” e com sacrifício do princípio constitucional da legalidade que é a base de qualquer Estado de Direito. Mas, além desses aspectos jurídicos, há na Operação Lava Jato algumas implicações de ordem econômica muito graves, implicações que os brasileiros não deveriam menosprezar.

De fato, essa operação tem provocado a “quebra” de inúmeras empresas nacionais, como é o caso, por exemplo, da Construtora OAS que pediu recuperação judicial (antiga concordata), e o caso também de outras empresas menores, fornecedoras da Petrobras, que estão fechando as suas portas à beira da falência.

Isso propicia a abertura do nosso mercado interno e facilita a entrada de empresas estrangeiras (que não são vestais incorruptíveis), ampliando ainda mais a desnacionalização da nossa economia, sem contar os milhares de postos de trabalho que são sacrificados com o fechamento dessas empresas brasileiras, provocando um impacto altamente negativo na taxa de desemprego, que já estaria chegando à casa dos 8%, com tendência de elevação.

A polêmica Operação Lava Jato tem um forte impacto sobre a indústria naval brasileira, que até então era privilegiada pela Petrobras no fornecimento de sondas para exploração de petróleo em águas profundas. De fato, a Petrobras comprava exclusivamente dos fornecedores nacionais e impulsionava a nossa indústria. Todavia, o setor naval estagnou de repente e já demitiu 14 mil empregados, revivendo a crise dos anos 80, com o risco de entregar mais uma vez o nosso mercado interno às empresas estrangeiras.

A Petrobras é a maior petroleira da América Latina, cujo patrimônio e faturamento superam o PIB de muitos países do mundo. Não há dúvida, porém, que a Operação Lava Jato, com todo o seu estardalhaço, afeta o valor e a credibilidade dessa empresa nacional, facilitando o caminho e o discurso daqueles que sempre quiseram privatizá-la juntamente com as nossas preciosas reservas do pré-sal.

Estima-se que a Operação Lava Jato, pelo grande reflexo que teve sobre os negócios da Petrobras, sobre a produção da indústria naval brasileira e sobre as empresas “satélites” que atuam em torno da petroleira e de seus fornecedores, já provocou um impacto negativo no PIB nacional de aproximadamente 2% no último ano.

Em suma, diante desse cenário tão complexo, é preciso saber se os brasileiros estão mesmo dispostos a pagar todos esses custos jurídicos, políticos e econômicos, que põem em risco o nosso Estado de Direito e a nossa soberania econômica, para combater a qualquer preço não a corrupção, mas apenas um caso de corrupção.

Ninguém discorda que a corrupção e o histórico patrimonialismo do Estado brasileiro precisam ser combatidos diuturnamente, sem trégua. Seria insano afirmar o contrário. Mas, nesse caso da Petrobras, como diz a sabedoria caipira lá na minha terra, e com perdão da metáfora meio chula ou talvez até vulgar, “parece que estão querendo matar o boi para acabar com os carrapatos”.